"Não tiro minha lucidez das estrelas, e sem dúvida acredito-me conhecedora da Astrologia, mas não para dizer a boa ou a má sorte, de pragas, de morte, ou qualidades das estações; mas de teus olhos eu tiro meu conhecimento e nas estrelas fixas eu leio tal Arte; que Verdade e Beleza florescerão juntas se te converteres no Guardiã de ti mesma. Do contrário, de ti eu prognostico isso: que teu fim será o término da Verdade de da Beleza". Shakespeare
terça-feira, 22 de março de 2011
OUTONO ANUNCIADO
"…faz de conta que ela não estava chorando por dentro ─ pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado".
(Clarice Lispector)
A vida já vai pelo meio e ainda estou aqui; colecionando anos de estagnação.
Não sei ao certo qual teria sido o melhor caminho, apenas vejo que a vida foi passando pelas mãos e os sonhos já estão devidamente enterrados. Talvez ainda sustente a ínfima esperança de um dia, bem mais adiante, contemplar o cair das folhas da roseira numa tarde cinza de outono.
O verão passou e foi intenso, a nova estação chegou branda e silenciosa; nem tive tempo de perceber que o meu rosto ganhou algumas marcas, que o ipê já está sem flor e o tom castanho da paisagem deu novas nuances à rua, à casa, às pessoas.
O vento tem batido mais forte na janela, e as emoções começam a fluir: disformes, melancólicas; espalham-se pela minha mente em profusão.
De nada adiantou me aproximar da porta se eu estava aguardando a primavera.
As folhas começaram a se acumular na nossa varanda, mas eu não quis ouvir o ranger dela, pisando no passado para não abrir caminho a lembranças que machucam.
Eram sete horas da noite quando ouvi você dizer aquela frase que até agora soa na minha mente e me põe em confusão: - Por que você abandonou o jardim?
Eu não soube responder, mas queria, queria muito ter um argumento qualquer para justificar o meu descaso, a minha reclusão. Talvez eu dissesse que foi por culpa da estação.
Foram anos, muitos anos cuidando do jardim, olhando da varanda as folhas que amarelavam e ficavam rotas até serem levadas pelo vento que por ali passava.
Não ligava para as folhas, eram como as pedras do jardim, mas gostava de olhar as hortênsias em mutação, ganhando novos tons até se desprenderem do galho e secarem ao sol gélido e acinzentado do início das manhãs.
Mas mudei junto com os anos; é novamente outono, e eu não gosto mais de ver as folhas caindo. Os dias amanhecem frios e nublados. A rotina matinal tem sido entediante. Só sinto vontade de voltar a dormir e acordar na primavera, ficar horas a fio olhando o colorido das flores que começam a ganhar vida, depois tomar um banho, colocar os óculos escuros e sair sem rumo.
Na primavera devemos sair sem rumo, sozinhos, sem olhar o relógio, voltar só depois que o sol estiver morrendo no horizonte.
Se o calor estivesse presente, ouviria uma música agora, arrumaria a casa, faria um sorriso de contente, abandonaria os pensamentos ruins.
Talvez chorasse de felicidade. A felicidade também me dói às vezes.
Mas é outono e nada disso será possível; sinto-me o próprio obstáculo no caminho.
O casulo está fechado com muros altos, preciso proteger-me de mim mesma, dos olhares curiosos que me atormentam.
Eu queria a solidão indizível, sem etapas, embalada apenas pela melodia que os meus pés querem dançar, queria dizer as palavras certas na hora exata, ainda que desequilibradas, fantasiadas, intraduzíveis.
Mas o tempo não me permite criar uma realidade inventada, tirar dos meus sonhos aquilo que acredito ser a minha felicidade. Preciso bem mais do que um punhado de alento para sincronizar os passos de acordo com a minha verdade. Porque no fundo, eu não quero alterar as coisas, quero apenas provar a doçura do outono na boca e abrir a porta sem achar que é o cinza que me entristece.
Postado por Contextual
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